Onde hoje é a nação do Afeganistão já foi, um dia, o coração de uma região chamada Bactria. Tal região foi colonizadas por povos nômades vindos, provavelmente, das estepes da Ásia Central e Rússia, marchando em direção ao subcontinente indiano e à região onde hoje é a Pérsia. Tais povos ficariam conhecidos como Indo-arianos ou Indo-ários, uma vez que denominavam-se a si mesmo Arianos. Sua língua e etnia é a ancestral dos povos da região da antiga Báctria e de muitos povos dos atuais países do Afeganistão, Irã, Paquistão, Tajiquistão e até mesmo da Índia. A influência ariana na Índia é gigantesca: o Hinduísmo é uma religião ariana trazida com a imigração desses povos para dentro do subcontinente, assim como também o é o Sânscrito, a língua sagrada e religiosa dos hindus, conhecida por ser língua mais antiga ainda escrita e falada do mundo.

Essa diversidade de povos trazida pela imigração indo-ariana é particularmente visível no Afeganistão: os Pashtuns, etnia indo-ariana, formam a maior parte da população afegã, seguidos pelos Tajiques, de lingua persa, com ainda muitas outras etnias menores e que, apesar de diferenciadas, fazem parte da mesma família etno-linguística dos pashtuns e tajiques, como os balochis, pamiris e nuristanis.

Há um povo indo-ariano, todavia, que diferencia-se destacadamente dentre seus vizinhos e primos no Afeganistão (e também no Paquistão), não apenas por serem a menor minoria étnica de todo o país, compreendendo cerca de 4 mil pessoas, mas também pela sua cultura e sua religião, ainda pagã, no meio de uma região totalmente muçulmana. Estamos falando dos Kalash, um até relativamente conhecido povo, por ocasião de recentes reportagens midiáticas, de origem misteriosa, uma vez que sempre foram o xodó de acadêmicos e antropólogos em virtude de sua curiosa e distintiva posição: eles estão colocados num relativamente isolado vale chamado pelo resto dos afegãos de Kafiristan, cuja tradução é “Terra dos infiéis” ou “Terra dos pagãos”, que fica na fronteira do Afeganistão com o Paquistão, onde há comunidades kalash também. Tal nome se dá justamente pela característica mais distintiva dos Kalash: eles são o único povo de toda a região da antiga Báctria que manteve suas tradições religiosas originais, não convertendo-se nem ao Zoroastrismo, como era costume durante o auge das Dinastias Persas dos Partas e Sassânidas, nem ao Islã, quando este lá chegou e levou todos os seus vizinhos e parentes étnicos a rezarem voltados para o Mihrab.

Quanto à sua origem, foram propostos por muitos estudiosos orientalistas dos séculos XIX e XX que eles teriam alguma ascendência europeia em virtude da grande presença de pessoas de feições claras (pele alva, olhos e cabelos claros, azuis, loiros); algumas hipóteses levantadas chegaram ao ponto de postular que seriam descendentes de colonos e militares macedônicos trazidos por Alexandre, o Grande, quando este fez sua campanha contra a Índia. Hoje, todavia, sabe-se que são apenas um povo isolado da grande família indo-ariana que colonizou a região.

A religião que os Kalash mantêm viva até hoje é considerada pela quase unânimidade dos estudiosos como sendo uma espécie de “proto-hinduísmo”, ou “arqueo-hinduísmo”, pelo fato das inúmeras semelhanças com as divindades hindus (e zoroastras também) tanto em questão de nomes quanto em questão da forma de culto de das crenças que os Kalash mantém com relação aos seus deuses. Alguns observadores também a rotulam como sendo uma religião animista apesar de, como diz o estudioso Michael Witzel, a religião Kalash tradicional ter uma semelhança de partilha de "muitos dos traços de mitos, rituais, sociedade e ecoa muitos aspectos da religião rigvédica".

A “religião rigvédica” citada por Witzel refere-se a uma das formas mais antigas do Hinduísmo (que evoluiu e se modificou muito conforme a História se passou), com os estudiosos e religiosos hindus considerando as escrituras do Rigveda a mais antiga forma de Hinduísmo institucionalizado. Desse modo, a Religião Tradicional Kalash seria ainda uma forma ainda mais arcaica, não-institucional, da religião hindu mais primeva, adicionando-se o diferencial do regionalismo tribal, também. Em outras palavras, a religão dos Kalash pode ser definida como um “hinduísmo que ficou no meio do caminho até a Índia” e, assim “desenvolveu-se localmente e diferentemente”.

Dentre os deuses principais dos Kalash, chamados de Devalog, ou  Dewalōk, podemos citar Mahandeo (comparado ao Mahadev hindu, cujo nome significa “deus supremo”); Imra, que é muito associado a Yama, o deus da morte hindu, mas que na mitologia kalash é reverenciado como uma divindade demiúrgica, isto é, criadora; Indr, que é asscociado ao Indra hindu e ao arco-íris; Baliman, uma figura guerreira e heroica associada aos cavalos (animais sagrados na religião kalash) que, vindo montando num, ensinou os kalash a celebrar o festival de inverno (Chawmos), estando ligado com Tsyam, a pátria mitológica dos Kalash. Jestak é a da vida doméstica, família e casamento, sendo sua habitação a casa das mulheres (Jeṣṭak Han). Dezalik é a deusa do parto, da lareira e da força vital; ela protege crianças e mulheres. Há ainda figuras semelhantes a “fadas” que são ditas habitarem as montanhas, tais como Suchi, Varoti e Jach. Essas divindades têm santuários e altares espalhados pelos vales, onde frequentemente recebem sacrifícios de caprinos e oferendas de leite e alimentos.

Os rituais kalash consistem principalmente de festivais e rituais feitos nestas ocasiões: são geralmente sacrificados cavalos, cabras e ovelhas. Seus altares, geralmente espalhados por todo o território do Kafiristão, quase sempre apresentam uma característica em comum: sua estrutura quadrilátera ou retangular detém efígies de cavalos nas pontas que, como vimos, é um animal sagrado e importante para os kalash. O vinho é uma bebida sagrada e com carga ritualística, sendo associada ao deus Indr, que por sua vez é dito possuir um vinhedo (localizado em um vale em específico do Kafiristão, onde há um altar a Indra com vinhedos ao redor), que ele defende contra invasores. A ritualística Kalash tem ainda também muitas semelhanças com a hindu: como nos Vedas, a antiga classe de artesãos locais não pode desempenhar as funções religiosas públicas, e os corvos são associados aos Ancestrais dos Kalash, sendo frequentementes alimentados com a mão esquerda (como nos Vedas) em tumbas e outros locais. Esses rituais religiosos e públicos eram os rituais realizados por sacerdotes chamados ištikava", “padre” (de ištikhék  “para louvar um deus”). Essa instituição de sacerdócio, todavia, parece ter de desaparecido desde os contatos antropológicos da primeira metade do século XX para cá; ainda existe, todavia, a proeminente função dos xamãs (dehar), que acabaram assumindo a direção das funções religiosas.

A cultura dos Kalash também é destacada da de seus vizinhos, dado o seu isolamento geográfico, cultural e religioso. A cultura e o sistema de crenças Kalash diferem dos vários grupos étnicos que os cercam mas são semelhantes aos praticados pelos vizinhos Nuristanis no nordeste do Afeganistão antes de sua conversão ao Islã (embora muitos costumes pré-islâmicos tenham sobrevivido na cultura nuristã). Suas vestes tradicionais são de uma mistura de cores, bordados e miçangas; as roupas mais elaboradas são geralmente usadas nos festivais religiosos Kalash, que contam com três principais principais festividades (na língua kalash “khawsáṅgaw”): Chilam Joshi em meados de Maio, o Uchau no Outono e o Chawmus no meio do Inverno. O festival mais importante é o Chawmos, que é celebrado por duas semanas no solstício de Inverno (por volta de 7 a 22 de Dezembro), no início do mês chawmos mastruk. Ele marca o fim do trabalho de campo e da colheita do ano. Envolve muita música, dança e cabras sacrificadas parao consumo dos festejantes. É dedicado ao deus Baliman, que se acredita visitar a mítica terra natal dos Kalash, Tsyam, durante a festa. Assim como os hindus, os Kalash creem que os deuses visitam a terra ‘temporariamente’.

Os kalash conseguiram manter-se intocados com a sua cultura e religião através de um forte esquema social e geográfico de isolamento, assim como também o fizeram muitas minorias religiosas pós-islâmicas esotéricas do Oriente Médio, como os Alauítas, os Druzos e os Iázidis que, habitante em regiões montanhosas e isoladas, conseguiram manter-se a salvo junto de suas crenças. Assim foi com os kalash: ao compasso da história, pe sabido que muitos kalash se converteram so Islã; estes, no entanto, em virtude da sua conversão (seja ela voluntária ou não, uma vez que muitas incursões e tentativas de conversão já foram feitas no Kafiristão, sem sucesso, como na época de Timur, o Grande, cujas invasões à região culminaram no primeiro registro na história sobre os Kalash) sempre foram ostracizados e banidos da sociedade kalash. Um líder dos kalash, Saifula Jan, declarou: "Se algum Kalash se converter ao Islã, não poderá mais viver entre nós. Mantemos nossa identidade forte". Isso se confere na atualidade: algumas estimativas pontuam que por volta de metade a um terço da população étnica kalash se converteu e hoje pratica o Islã, vivendo, todavia, fora das comunidades kalash, onde são chamados pejorativamente de sheikhs. Estimados em cerca de 3 mil convertidos ou descendentes de conversos, eles não vivem nas comunidades originais mas acabaram formando comunidades islâmicas kalash paralelas, vivendo nas proximidades das aldeias pagãs e retendo sua língua e muitos aspectos de sua cultura antiga.

Apesar de serem desafiantes com relação à religião absoluta de seu próprio país (o Islã), configurando nada mais que um pontinho no mapa, os Kalash conseguiram, em virtude de todos os motivos citados, manter-se praticamente intocados e parados no tempo; talvez a sua pequena numerosidade e quase irrelevância no panorama nacional tenha contribuído para que a convivência entre estes proto-hindus e seus vizinhos muçulmanos tenha sido relativamente tranquilam, com poucas contendas e perturbações. Durante a Guerra do Afeganistão, movida pelos rebeldes afegãos contra os soviéticos e seus aliados do governo de Cabul, o cada vez maior grupo terrorista pashtun Talibã começou a fazer incursões contra as vilas kalash, resultando num ciclo de violência em mortes nos anos 80 e 90. No entanto, a proteção do governo que foi instaurado após a intervenção americana levou a uma diminuição da violência por parte do Talibã e seus apoiadores na região e a uma grande redução nas taxas de mortalidade infantil.

Nos últimos tempos, os Kalash do Paquistão e outras minorias foram constantemente ameaçados de morte pelo Talibã, causando indignação e horror aos cidadãos em todo o Paquistão; em resposta, os militares paquistaneses reforçando a segurança em torno das aldeias Kalash. A Suprema Corte também interveio judicialmente para proteger os Kalash tanto sob a cláusula das minorias étnicas da constituição quanto da lei Sharia do código penal paquistanês, que coloca ilegal para os muçulmanos criticar e atacar outras religiões com base em crenças pessoais (sim, é ilegal na Sharia islâmica atacar ou injuriar pessoas por suas crençãs religiosas). O primeiro ministro paquistanês à época, Imran Khan condenou a ameaça de conversões forçadas como sendo uma postura anti-islâmica. Em 2017, Wazir Zada ​​se tornou o primeiro homem Kalasha a conquistar um assento na Assembleia Provincial de Khyber Pakhtunkhwa, com um assento reservado minoritário. Em novembro de 2019, os Kalash foi visitado pelo duque e pela duquesa de Cambridge, como parte de sua turnê no Paquistão, e onde assistiram a uma apresentação de dança tradicional. As últimas duas décadas viram um aumento nos números populacionais do grupo, bem como na sua qualidade de vida e proteção por parte dos governos islâmicos (deve-se frizar) e pela própria Sharia, que lhes garante a manutenção de suas crenças, afinal, como diz o Alcorão: “Não há forçação na Religião” (Al-Bácara 256).

Bibliografia:

"The KalashProtection and Conservation of an Endangered Minority in the Hindukush Mountain Belt of Chitral, Northern Pakistan" (7 July 2007).

LINES, Maureen (1996). The Kalasha People of North-Western Pakistan. Emjay Books International.

CACOPARDO, Augusto S. (2017). Pagan Christmas: Winter Feasts of the Kalasha of the Hindu Kush. Gingko Library

BEZHAN, Frud (19 April 2017). "Pakistan's forgotten pagans get their due". Radio Free Europe/Radio Liberty.

"Forcibly converting people un-Islamic, says Imran". Dawn.com. 14 February 2014.

àDisponível em: https://www.dawn.com/news/1086976/forcibly-converting-people-un-islamic-says-imran

"For Kalash, Wazirzada personifies hope for identity". 28 June 2018.

àDisponível em: https://www.dawn.com/news/1416605